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segunda-feira, 7 de junho de 2010

Criação literária :Seqüela

autora: Suê Galli
Era o ano de 1958.
A ferrovia estava em greve, mas alguns maquinistas de carreira se negavam aderir ao movimento.
Os líderes articulavam estratégias para que todos ajudassem a barrar os trens, guiados por aqueles que resistiam à paralisação, “furando a greve”.
Podenciano era um jovem ajudante de maquinista em sua primeira ação grevista. Durante o período de paralização dos trens pelo movimento grevista, ele chegava em casa todos os dias e tornava-se o herói para os filhos e a mulher que ouviam os relatos de mais um dia de greve na companhia ferroviária. Era a voz do mais engajado dos grevistas. Apaixonado pela ferrovia e pelo seu trabalho de ajudante, limpador, acreditava que a greve tornaria ainda melhor sua vida e dos colegas que passavam até 12 horas em cima da máquina, longe de casa.
Num dia em que já se esgotavam as forças e articulações do movimento, um “pelego”, desafiou a paralisação dirigindo-se para a Estação Ferroviária, onde se concentravam os operários. Ao ver o maquinista subir em uma das máquinas e acionar a partida, Podenciano deslocou-se do grupo e arremessou-se para os trilhos postando-se diante da máquina e dos vagões que compunham um trem de carga pesada. Ficou lá com os braços abertos em cruz, esperando que o maquinista parasse o trem. Os colegas que assistiam a cena perderam a respiração, emudeceram, transpiravam de nervosismo e tensão. Um corpo estava prestes a dilacerar-se entre as ferragens. O corpo de um homem, trabalhador, apaixonado pela causa. O trem não parava, aproximava-se lenta e continuamente. O sol refletia nos trilhos gastos ofuscando a visão. O calor escaldante, fazia exalar o suor dos trabalhadores parados há dias. Tinham a aparência de quem não comera, não dormira, não tomara banhou desde o último dia trabalhado. A greve os flagelava. Amavam o trabalho. Sentiam-se os super homens das máquinas a vapor ou a diesel, que acertavam a hora dos relógios da cidade, com seu apito de chegada e partida. Trem de carga. Trem de passageiro. Manobristas, Limpadores, Ajudantes, Maquinistas. O trem continuava deslizando sobre os trilhos e o homem não desistia de pará-lo com o próprio corpo.
Com o fim da greve acabou também a espontaneidade de Podenciano. Sem saber direito por que, a família e os amigos perceberam que ele se tornara um homem meio calado. Perdeu o entusiasmo de narrar os episódios daquele grandioso evento que o fez, por um longo período, herói.
O tempo passou e as pessoas que o conheciam acompanharam sua crescente ansiedade pela aposentadoria. Antecipou-a e declarou-se um homem livre, quando recebeu a carta. Nesse dia, colocou a roupa mais bonita postou-se diante de um espelho em sua sala de estar e tirou uma foto com os dois braços abertos prontos para um abraço, ou para parar um trem. Mandou um exemplar para os filhos que o acharam feliz e que isso o faria voltar a narrar aos netos as aventuras e façanhas como o fizera antes. Mas não. Podenciano caiu numa profunda tristeza e começou a esfriar.
Mais tarde, descobriu-se que após a greve fora tachado de perigoso e estigmatizado no trabalho. Transferido de um local para o outro não tinha mais amigos nem apegos. Dez anos depois, durante a ditadura militar dos anos 70, ainda na ferrovia, desapareceu por duas vezes, ficando dias sem dar notícias. Na segunda vez, voltou com a conversa de parar de trabalhar e, aos 45 anos já era um velho aposentado.
A vida na ferrovia roubara-lhe qualquer possibilidade de uma outra identidade senão a de fazer parte dos trens, suas rotas, seus reparos, seus atrasos, seu fascínio. Por muitos anos continuou indo à estação ferroviária para ver a chegada e partida dos trens que permaneceram no antigo horário. Logo isso também perdeu o significado. Comprou um carro, que passou a substituir a máquina que dirigiu até aposentar-se. Bom maquinista, bom motorista. Ainda hoje, quando recebe notícia da morte de um companheiro ferroviário, é ele quem transporta os colegas mais velhos e debilitados para o velório: derradeira reunião cuja assembléia traz como única pauta a despedida.
Encontrei Podenciano domingo passado na casa de amigos, comentei que na segunda feira teria uma assembléia de professores para decidir questões que mereciam uma paralisação. Ele ficou quieto ouvindo. Sabendo de sua história o provoquei lembrando a passagem da greve de 58 e o episódio do trem fura greve. Ficou calado de olhos brilhantes, fixos em mim, até que interrompeu-me dizendo: Naquela época eu era um louco perigoso para meus colegas.

4 comentários:

  1. Um site é um lugar. Um lugar no tempo do autor, um lugar no espaço virtual quase imune ao tempo humano. A não ser por um colapso tecnológico ou algo que o valha, um site é como as pedras em que os ancestrais gravavam suas histórias. Nele está um rastro de quem fomos. Como um livro, mas diferente...
    Diferente pois o site é pedra viva, mole para quem o maneja, e por ser assim, é vivo.
    Seu alimento brota da vontade do autor em mover-se até ele, traduzindo, transcrevendo seus textos e artefatos.
    O site é vivo, enquanto pulsa o interesse de quem o alimenta.
    E quando o autor, movido por outras águas, resolve abandoná-lo, como um belo Coral marinho o site permanece ali, submerso no tempo, presente e ainda vivo para o incalto leitor.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Caraca, meu sobrenome, Podenciano, Everton Podenciano, meu avô foi maquinista na ferrovia, achei muita coincidência, até onde essa hostória é fictícia?

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  4. história verdadeira! Aconteceu em Marilia Estado de São Paulo

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