Carta de intenção autor (a) desconhecido
Era a reunião de encerramento e
avaliação da Consultoria que eu prestara nos últimos dois anos, seguida de
confraternização típica de final de ano. Terminado tudo, fiquei na sala ainda
mais um tempo desligando equipamentos, guardando pertences, pensando nas falas
das pessoas, suas expressões e olhares, fragilidade dos sorrisos que se
esforçam para se mostrar serenos. Pensava também no percurso que eu fizera
naquele contexto, pessoas que conheci, outras que me recusei conhecer e ainda
as que vieram comigo no pensamento. Já
ia me retirar quando notei entre os papeis deixados sobre minha mesa uma folha
dobrada em quatro e sobre a face superior, escrito em letras maiúsculas: 2011.
Era uma carta deixada, esquecida talvez, ou ainda, e por que não, endereçada a
mim, não sei por quem e por que razão. Cheguei pensar que poderia ter sido
escrita por mim mesma, num tédio durante a reunião... Não tinha muita certeza
até ler sem pressa, deleitando-me ao identificar ideais, muito próximos dos que
seriam também os meus, a carta dizia:
Quando um
ano termina no seu último momento, leva com ele o que não queremos mais que
continue conosco no novo ano que começa... É assim uma espécie de reengenharia
do ano sabe como? Perguntamo-nos: do que
vivi e vivo o que quero viver de novo ou continuar vivendo no novo ano? O que
não quero mais, e o que re-viveria de um
jeito diferente e novo? No entanto essa é uma atitude que reúne exigências de
escolhas e decisão nem sempre fáceis, muito menos as portas do ano novo, quando
o velho ainda insiste em seus apelos pra viver até seu último suspiro aquilo
que trouxe consigo, seja sonho ou pesadelo. Por isso essa carta de intenções:
plano de bordo, instrumento de controle e planejamento dirigido a mim mesmo:
comandante desse navio quase sempre a deriva, tripulação de origem complexa,
mapas alterados, bússola quebrada, instrumentos de bordo fictícios, destino
desconhecido.
Quero deixar
neste 2011 a compor o passado: tudo o
que transbordou quase insuportável em minha vida: seja em emoção, sentimentos, seja
preocupações e incertezas, medos e angustias que me enfraqueceram o espírito de
decisão, marca maior de minha identidade. Deixo com 2011, o que se me mostra
impossível realizar com arte e encantamento em 2012 e nos outros anos que o
seguirem. Faço agora exercício solilóquio a identificar todos esses guardados dos
quais quero desguardar. Desfazer e dês-sentir a sensação de suspense que me toma,
diante de situações desconhecidas, enigmáticas de solução, esdrúxula de
compreensão, e feito de perguntas que se despedaçam, multiplicando incertezas,
muito mais que curiosidades e desejo de respostas... Soluções, ainda que capazes
de acenar novas dúvidas... Deixar 2011 levar com ele o que termina, sinalizando
o que deve terminar pra que 2012 venha pleno de esperanças e utopias, prestes a
se tornarem projetos viáveis, invenções grávidas de realizar emoções e
sentimentos verdejantes, prósperos e latentes de vida real, temperadas pelo
imaginário criativo e prazeroso... Que leve com ele, esse 2011, os sentimentos
que aperfeiçoei com inventos que aprenderam a me enganar com inexistentes
perspectivas, ganhando vida própria a sabotar a imaginação de mudar o foco e sair
do alvo que me acerta fatal sem escolha, sem brechas, sem alternativas... Dar a
2012 o potencial de fazer ressurgir a capacidade de domar sentimentos estranhos,
inviáveis e impossíveis de se sedimentar... Transmutá-los, redescobri-los
noutros lugares, elementos e fazeres... Domesticá-los... Torná-los sob controle
e palavra de ordem, livres da desordem que deixa assim, o vazio do não se saber
pra onde ir... Camuflam o desejo de não querer mais ser assim, a que me tornei,
e que toma conta de todas que fui, tirando-me a liberdade, de não ser mais,
quem não quero ser... Tempo de domar-me a mim mesma restituindo-me o que perdi
nesse labiríntico caminhar a que me propus insensato, inventivo e desleal
comigo mesma, na medida em que me deixo assim enigma de mim mesma, senha
esquecida, código alterado, razão destituída, excessiva poesia a me roteirizar
cada ato... Confio a 2011 este senhor gentil e maduro que se despede de mim,
retirando-se da festa que me dei neste ano, inclinando sua cabeça alva, pele
enrugada e mãos calejadas, envelhecidas, sorriso generoso, voz suave a me pedir
clemência pra comigo mesma nessa
despedida...confio a ele levar consigo, o que trouxe pra mim, sem me avisar que
traria...Que retire de minhas entranhas, pele e pensamento o imaginário que
criei e passei a co-existir abandonando-me por inteiro a que sou presente e
responsável por mim mesma, meus sonhos, fantasias que inspiram fieis, toda a
arte que me faz, a que fui na versão 2011 e a que quer ser versão 2012.
Reli várias vezes a tal carta. Em
todas elas fingi ser eu mesma sua autora, o que me causava ao mesmo tempo
estranhamentos e lucidez. Por fim acalmei meu lado racional. Afinal, era apenas
uma carta esquecida sobre minha mesa, por alguém que podia até mesmo, não ser
eu mesma... Mas alguém que precisa escrever o próprio mapa com o que acredita
ou inventa pra se divertir, brincar com ideias e palavras, tentar se conhecer,
desfazer-se do que fez no ano que termina
e desenhar intenções pro que vai nascer.
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