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sexta-feira, 25 de maio de 2012

Choro de Loren

Atormentada em sua tempestade particular Clarice decide  se despenca seus raios e trovoadas com o aguaceiro que lava sua cidade secreta, ou se pinta na parede em branco de sua liberdade literária, um jeito diferente de viver fora do espelho, longe das lentes. Se aceita esse  constante polimento feito com palavras...um  cristal bruto que reluz a cada inspiração, verso, narrativa...ou se experimenta abrir todas as janelas e ouvir o canto que vem de fora, dentro dela e a faz chorar...

Clarice conversava com os amigos escritores, sobre a expressão e manifestação dos sentimentos de uma poetiza, seu novo projeto. Loren um de seus amigos, jovem apaixonado pelos mistérios descritivos que tornam o improvável possível, ponderou sobre o choro, uma manifestação de sentimentos das mais diversas justificativas... Clarice de pronto defendeu sua impressão sobre o choro como um artifício por ela considerado valioso, portanto utilizado em raras ocasiões...   Loren, conhecido pelo grupo como alguém que não economiza suas emotivas lágrimas não desistiu de sua tese, foi desenhando o argumento sobre seu próprio ato de chorar... Veja bem Clarice choro quando alguma coisa me machuca me faz sentir dor seja pela ameaça que sinto da perda seja por imaginar o meu ser privado daquilo que amo e que me faz feliz. Cada pessoa tem seu modo de chorar minha amiga, continuou Loren, você o faz por meio de sua escrita. Você chora escrevendo Clarice!

Clarice que presenciava há anos o modo como Loren vivia sua inspiração, tratava-o como alguém que devia ser vigiado numa conversa pois suas lágrimas sempre vinham mesmo ser ser convidadas,  paralisou seus gestos e palavras, tirou discretamente  da bolsa o bloco de anotações, fazendo parecer que não estava muito interessada... Loren continua, quisera eu recorrer a esse dom, transformar em letras minhas lágrimas que ao rolarem face abaixo se encontrassem formando palavras que aliviariam os terrores que me afligem...que ao sentir-me face ao pranto que me ocupa noites insones, conseguisse afugentá-lo com vogais munidas de um exército de riso e esperanças, que no exercício de se juntarem em palavras, mostrassem que a dor da perda anunciada pode ser inspiração pra mais um romance. É assim que eu vejo seu choro Clarice, lágrimas que molham seus romances e que um, ou outro leitor, as recolhe pra si e sacia a própria dor ou move a propria inspiração. Enquanto você,  abre uma página do bloco e escreve seu pranto que não apaga a chama da dor que carrega e nos dá uma Clarice perturbada em constante conflito. Clarice continuava escrevendo... ao perceber que Loren parara levantou os olhos, fitando o amigo, admirando com suave expressão, a lágrima que corria no canto dos olhos de Loren. Ela abaixa a cabeça num sutil movimento de negação, e continua escrever. Conhecia o amigo e sua exacerbada sensibilidade. Clarice se levantou aproximando-se dele beijando-lhe os cabelos.
Nascia mais uma obra literária.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Vogais para Clarice

Clarice relembrava o episódio que anos atrás a tornara doadora de sangue. Estava no hospital com seu pai adoecido de um mal que o levaria dela pra sempre...mas até que isso acontecesse Clarice aprenderia tudo sobre a morte e a vida que sobra dela...se tornaria diciplinadamente doadora de sangue como  um gesto de tributo a vida. Na ocasião  tinha certeza absoluta que poderia salvá-lo  com seu sangue que segundo ela   vinha enriquecido de seu amor, sua inspiração e devoção de filha. A cirurgia aconteceu as pressas, e no meio da noite ela foi chamada no quarto onde o aguardava de volta da UTI. Ela devia comparecer imediatamente ao Centro Cirúrgico...uma complicação...precisavam repor o banco de sangue por ele utilizado e como responsável deveria assinar os documentos. Isso acontecera há quatro anos, Clarice devia repor quatro litros de sangue para repor o que seu pai levara com ele pra sabe-se lá fazer o que...Na ocasião vários amigos  se dispuseram a doar, mas ela mesma se encarregou disso...tornou-se doadora e o fazia a cada 90 dias! seu sangue é o de tipo "O" que pra ela deveria ser  "U" já que é universal. Clarice agora no seu leito de morte não precisa de sangue, precisa de muitas vogais pra redigir uma nova senteça em lugar daquela que designou seu tempo de vida. Lançou então sua última campanha: doe vogais para compor palavras a Clarice. Elas vinham de todos os lugares e se amontoavam na sua varanda, vogais de cores e texturas, de sons e formas inigualáveis. Clarice brincava com elas, formava palavras frases, jogava-as para o alto juntado-as no avental florido misturando-as com o perfume...Clarice acordou no loft onde vivia desde a volta de sua viagem a Cuba...seus amigos Muriah e Loren estavam lá, vieram pra ficar com ela seus últimos poemas de vida...Carinhosamente  a abraçavam deitando-a em seu travesseiro perfumado pronto para a acolher seus sonhos poemas de eterna esperança.

De novo Clarice : desamparo.

Só quem conhece  Lispector é capaz de reconhecer o sentimento de desamparo que inspirou sua literatura e deu alento a tantos e tantas Clarices...Suê Galli.
                                                          
No limiar de transcender o cotidiano, como se em busca de um milagre, ou uma simples descoberta que desvenda e põe a nu as profundezas de sua alma, Clarice se vê prestes a concluir sua jornada literária. Seus personagens que habitam o presente, o futuro e um passado que não se restringe a vida na terra, mas a existências fictícias ou não, em outras formas de vida, outros espaços e tempos, estavam todos diante de sua tela prontos pra despedida. Clarice necessitava definir o seu agora, desemaranhar o fio que a prendia tênue a romper-se lento esticando-se até o limite da tensão possível. Estava muito doente e sem perspectivas de cura para a doença que a afligia apressada, como se em fuga do desmoronamento que a tornaria escombros irreconhecíveis. Afastara-se de todos e habitava agora seu estúdio fotográfico, lugar de criação de imagens para sua mais nova inspiração: a aproximação da morte, esconderijo da alegria e da insensatez, lugar de esperar o milagre. A febre voltava infalível de hora em hora a queimar  as cortinas da janela de seu olhar esvoaçante pelo quarto, incendiando-lhe a face sob o véu da noite  infindável e lenta. Tinha  nas mãos o diagnóstico dos últimos exames de laboratório, com a recomendação para mais uma tentativa de tratamento. Uma frase curta no final da página...sentença que esperava nunca ouvir ou ler...palavras que jamais desejou ver juntas naquela composição e significados...infeliz inspiração de quem a teve, mais infeliz ainda ser tomada como indicação e solução para os designios de Clarice...qual caminho tomar insistia mais uma vez, a voz a lhe repetir...depende Clarice, depende de onde quer chegar...ela então resignada lia a recomendação que olhava pra ela ansiosa e sádica zombando antecipada da reação que traria...parar imediatamente de reler e de escrever o que tem escrito ultimamente...mudar o assunto de sua inspiração...Clarice conhecia esse antídoto para seu mal mas também os  efeitos para o bem em sua vida de sonhos e poesia, de crenças na inflexão e busca que desafia a realidade...era mesmo e de fato necessário definir o seu agora...cobriu-se com seu xale enrolando o pescoço, puxando para o queixo, cobrindo a boca que mordia os lábios até sangrar...e chora baixinho seu grito de revolta e desamparo pouco antes de morrer... enquanto não inventa seu próprio milagre.