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domingo, 1 de janeiro de 2012

Incidente

Eu sabia que eles viriam, eu também costumava vir... Fiquei a espera, posicionada num ponto estratégico para desfrutar de cada cena que construi, com o olhar com o qual acordei nesse primeiro dia do ano 2012. Seria minha versão de uma cena do Incidente em Antares do modernista Veríssimo. Sempre desejei reproduzir algo parecido em minhas ficções, hoje a ideia veio perfeita.
Primeiro dia do ano... Dia mundial da paz, feriado, o único do calendário me parece, inteiramente respeitado pelas culturas... Nele todos os serviços param inclusive, os que nunca o fazem, por exemplo, os shoppings centers: cavernas que Saramago descreve como um mundo de ilusão a nutrir o prisioneiro do consumismo induzido, que caracteriza o homem do Século XXI. Caverna protegida para dar aos visitantes as condições favoráveis ao desapego ao dinheiro suado, pra gastá-lo com coisas desnecessárias, vazias de significados e utilidades. Passarelas de prazeres e belezas artificiais que estimulam o desejo de ter coisas, tirar da vitrine de cristal com seus espelhos reluzentes e perfumes estonteantes, o objeto do desejo e levá-lo pra casa: mundo particular, limitado, povoado da verdadeira realidade que acorda cedo com o relógio, pra mais uma jornada  de trabalho, ter mais dinheiro, e no final da semana ir ao shopping, comer condimentos que enganam o paladar, consumir ilusões que se mostram como solução pra conter a melancolia: depressões que perfazem o perfil psicosocial do homem moderno.
No Shopping Center todo o conforto resguarda o sagrado momento da compra, gesto feito de sedução que impulsiona a escolha, a prova, e por fim poder levar consigo a ilusão. Sair com ela numa caixa embalada, sacola colorida a desfilar marcas e produtos, cheios de nada...desse mundo de ilusão e trevas, cegueira que impede a consciência sobre estar nessa caverna pós-moderna...lugar que implanta e faz crescer o vicio do consumismo, nas sociedades sob os desígnios de um modelo que tem na indústria e no comércio dos produtos, a mola da cidadania e protótipo de felicidade.
Mesmo sendo feriado eles viriam meio que autômatos, desavisados de que hoje o shopping estaria FECHADO! Fiquei observando e pouco a pouco, no horário em que dia normal estaria se abrindo, os carros foram chegando concorrendo vagas no estacionamento. Eles foram descendo, com sacolas de presentes do natal pra serem trocados, ou ainda pra comer um Big lanche, ir ao cinema comer pipocas, ver vitrines e provocar vontades, distrair olhares, sentimentos, necessidades de atenção, excessos de desamor, distrair o tempo, a vida, pra viver mais rápido... Estarrecidos se deparam com as portas do paraíso de ilusões fechadas... O temor se lhes assaltam ao ver que lhes restam a realidade do não poder entrar e viver o doce engano, forma mágica de se suportar...
E então a cena mais chocante de meus ensaios literários desfila diante de meus sentidos. A multidão foi crescendo, se agrupando em direção as entradas... começavam a caminhar em volta do enorme prédio como se fosse o estranho monolito da Odisséia de Stanley Kubrick  a emitir sinais de outra civilização, interferindo no nosso planeta, neste caso, os sinais estranhos emitidos pelos shoppings centers neste começo de século, não seriam decodificados pela equipe de astronautas liderados pelo experiente David Bowman e Frank Poole enviados a Júpiter na nave Discovery, controlada pelo computador HAL...pois não   existia desconforto ou suspeita sobre ele  e seus efeitos nas pessoas... Continuam rondando feito zumbis como que expulsos de seus cemitérios –  vidas que já não sabem mais viver sem a ilusão da caverna – e assim, meio que lhes faltando partes dos corpos em decomposição, diferentes estágios, seguem circundando o enorme prédio de centenas de andares, acessados pela portas que se abrem, automaticamente, ao sinal da presença de um humano, em situação de consumo... Hoje... FECHADAS!
Passei a observar o estado emocional daquela multidão fantasma, sedenta por entrar... Espalmavam as mãos nas enormes portas de vidro, grudavam a cara nelas pra tentar atravessar com a insana vontade... o inalcançável, anular o efeito do estar trancado, com o desejo de estar dentro...
Atenta e descritiva fixei seus corpos e faces... Estavam transtornados, emitiam grunhidos aterrorizantes, os cabelos grudados nas cabeças disformes, molhados de uma gosma esverdeada. De suas bocas vazavam um liquido escuro e aquoso; dos olhos escorriam sangue misturado com linfa arroxeada; das narinas um ar acinzentado com cheiro de gás e um odor de morte passada da hora que morreu...
Escrevi meu Incidente em Antares... os mortos em decomposição, da sociedade hipócrita e carcomida nas suas entranhas. Insepultos de mau cheiro exalado, sem dúvida, constituem um símbolo e revelam bem a decrepitude ética e moral  a que retratamos na forma do consumismo exacerbado e viciante, cuja contaminação resulta epidêmica, do modelo que tem no lucro, a referência e no consumo, a sobrevivência do sistema capitalista!
Quando as portas dos Shoppings centers se fecham, abrem-se as tampas dos caixões e desmascaram a sociedade morta, putrefata na ausência da consciência crítica...
Continuo observando aquele cortejo mórbido, desolado que perambula sem controle do certo e errado, seguem assim levados, amputados na chance da consciência... Ficam ali, passam a tarde, a noite, nem percebem o que fazem,  precisam entrar, respirar o ar condicionado ao comprar... Amanhece novo dia e, no horário comercial de dia normal, sem que seja o dia da paz universal... Triste ironia... As portas se abrem e então a mentira, mais uma vez vitoriosa e triunfante, retoma  seu lugar, baile de mascarados, logotipo de fachada Shopping Center lugar de felicidade!

Olho pras pessoas diante de mim, café da manhã sobre a mesa,noite dormida aos pedaços de panetone e frutas secas, conversas sobre o fim do planeta em dezembro de 2012...pergunto a elas, sabem se o shopping abre hoje? Alguém diz: hoje não abre nada! E eu insisto, e como vão fazer as pessoas que costumam ir ao Shopping em dias como hoje ? Alguém me fala e o que você acha que elas vão fazer?
Em alguns flashes vi tudo o que acabo de escrever causando mais esse incidente dentro de mim, não o de Antares, nem o do espanto diante do monolito negro,  mas o da consciência que me arromba os sentidos, em dias que os  shoppings se abrem, os homens se iludem  e o mundo se acabe.

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