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terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Remorso social

Precisávamos de uma casa maior... Compramos um terreno num lugar novo da cidade que se tornou, em menos de seis meses, nobre e super valorizado pela chegada de um shopping de luxo nas imediações. Construímos nossa casa e vimos então que nossos vizinhos eram pessoas muito ricas e por isso amedrontadas... Na ocasião, além de pesquisadora eu atuava junto aos movimentos sociais, envolvida diretamente com as camadas pobres da população, sobretudo um grupo especial de trabalhadores marginalizados que cumpriam pena em regime aberto... Eu os alfabetizava com minha equipe estudantes pesquisadores... Testávamos uma metodologia de ensino da linguagem escrita. Não fazia dois meses que eu estava morando na casa nova... Era domingo e tínhamos terminado nosso almoço... Todos em casa. Assistiam ao filme o 5º. Elemento, na sala ao lado... Eu retirava os pratos da mesa quando ele invadiu a sala... Entrou pelas portas dos fundos, tinha uns 20 anos, cabelos claros, magro alto, olhos fundos, estava trêmulo e de sua boca escorria uma baba espessa, em uma das mãos o gargalo de uma garrafa de vidro quebrada como arma, descalço, camiseta rasgada era quase um animal feroz, ferido... Deparei-me com ele quando atravessava a sala indo pra cozinha... Entrara saltando a cerca de proteção elétrica dos fundos, devia ter levado choque além de cair pesadamente... O alarme foi acionado e não demoraria muito para que os seguranças todos cercassem a casa para levá-lo... Quando vi o que poderia acontecer... Fechei rapidamente a porta da sala de tevê trancando minha família... Aproximei-me dele perguntando: Está tudo bem com você... Machucou-se? Ele me dizia: vim roubar... Quero roubar... E eu falava tudo bem, calma, Quer água? Ele fungava e vinha pra cima de mim... Quero roubar, eu vim roubar... Eu não parava de falar... Como conseguiu pular a cerca elétrica?Dizem que é perigoso... Você Levou choque? Então ele diz... Choque? Isso pra mim faz cócegas... Aproveitei que começou a falar, perguntei... Qual é o seu nome? Será que não conheço? Não! Não me conhece vim roubar! Tudo bem  dizia eu, mas vamos conversar você me parece alguém conhecido...será que não foi meu aluno? Ele pela primeira vez parou pra olhar meu rosto... As drogas que consumira começava a enfraquecer o efeito... E eu continuava... Se não foi você algum irmão seu deve ter sido meu aluno, sua cara não me é estranha... Quer comer alguma coisa?E então ele falava... Quero dinheiro! Está bem vou dar dinheiro pra você comer, mas antes vai provar minha lasanha... Deu-me pena dele... Começava a se enfraquecer... Os seguranças já haviam cercado minha casa... Eu falava pra ele... Coma um pouco e vamos sair daqui... Confie em mim... Jogue esse vidro ainda vai se machucar com ele... Quero ajudar você... Fui até a garagem tirar o carro pra levá-lo pra fora do condomínio, mas não consegui fui cercada e tiraram ele de mim... Ele gritava: ela é minha amiga... Foi minha professora... Eu não fiz nada! Fiquei aterrorizada... Jogado no camburão ele gritava me chamando... As pessoas que se acercaram me olhavam como se eu fosse um chefe de gangue... Levaram ele preso... Chorei muito naquela noite... Senti-me tão inútil... No dia seguinte uma convocação da diretoria do condomínio pedia minha presença em reunião extraordinária... Fui. As pessoas representavam os moradores que se diziam ameaçadas com minha presença e dos tipos que se diziam meus amigos... Na mesma hora fui informada que o rapaz já tinha várias passagens pela policia por furto com dois registros de homicídio, era perigosíssimo!Não era nem fora meu aluno, nunca o vira antes, usei isso pra tentar tocá-lo com meus sentimentos de gratidão e remorso social pela sua condição. Tentei explicar o que acontecera e de como eu tentara acalmá-lo por segurança de minha família e dele mesmo... Alguém dos presentes colocou sobre a mesa um jornal onde eu aparecia entrevistada sobre o projeto social em que atuava... Era para eles a prova de meu envolvimento com os tipos suspeitos que tanto temiam... Eu ainda não tinha visto o jornal, quase fiquei feliz ao ver as fotos dos meus monitores atuando com os operários da construção civil sob minha coordenação... Mas não havia tempo pra emoção ou orgulho naquela hora... Tive que assinar um termo de compromisso para futuros episódios... Voltei pra casa me sentido exatamente como os sujeitos de minha pesquisa-ação. Esse fato já tem 10 anos. Hoje sou colaboradora da diretoria do condomínio desenvolvo projetos culturais e de ajuda social (rico adora isso). Conclui meu pós-doutorado, uma titulação  reconhecida nas universidades, onde eu moro continuo sendo a pessoa que um dia colocou em risco a segurança dos moradores... Isso por que tentei tratar um "bandido"  como ser humano na esperança dele se lembrar que o era.

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