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terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Superposição

Pela janela transcorria o terceiro dia da penúltima semana do último mês do primeiro ano do início da segunda década do século XXI. Ele amanheceu claro e úmido. A chuva da noite refrescou o ar e as idéias latejantes a se esticarem, preparando-se para sair pelos vãos do pensamento. Alongou-se como um gato espreguiçando cada tendão, inalou longamente enchendo os pulmões do ar matinal, juntou as mãos sobre o peito em sinal de agradecimento, inclinou a cabeça levando o queixo direção ao coração, olhos fechados para ver dentro da alma ainda aquietada pelos fragmentos da noite e sono merecido. A vontade era sair correndo, atropelando os bonsais pelo caminho, sentar-se ao computador e digitar a senha pro dia começar... Mas resiste. Sabia que precisa de controle e serenidade... A alma andava reclamando a ausência do silêncio e seus ruidosos benefícios. A agitação era desleal na concorrência, ganhando em excitação num despertar rotineiro do desejo. Era preciso impor o ritmo biológico ao tecnologico que tomava conta dela nos últimos anos...Sentou-se na varanda pra ver escorrer a manhã na paisagem do dia. Olhou cada elemento de seu entorno, e por fim, já sem energias pra ficar em meditação vigiada, imposta, dirige-se ao  lugar favorito, o aconchego do ateliê com seus instrumentos de trabalho  prontos e a sua espera. Sobre  a bancada o estojo de tintas revirados exalam o delicioso cheiro de cores variadas, os pinceis se esbarram uns nos outros se misturando as polegadas das cerdas. O bloco de canson olha insistente para ela enquanto o grafite rola roçando-lhe os dedos, provocantes se oferecendo ao traço pra fecundar e nascer o desenho. Convidadas especiais as obras de Monet num livro sobre a mesa, insistem  motivar a inspiração... Abre o bloco e começa o trabalho. Linhas contornam a figura de  mulher debruçada sobre o teclado de seu computador, dicionários ao lado e uma biblioteca que se eleva ao teto infinita emoldura o traço, naquele espaço de tempo sem compasso, marcado pelo invento de ser único e raro momento....Na expressão da mulher do desenho sua história revela e define o destino plástico e significativo da obra, sua linguagem e alvo: o expectador. Vivia até então de sua escrita, inspiração própria, autonomia criativa, base de dados fictícios mediados com a realidade imaginária e alguns flashes de memória e de história. Sua escrita sua vida, terapia, brinquedo, fantasia, paixões, invenções, memória, sentimentos, acervo de cultura e arte, poesia, crença e perseguição da sabedoria. Mas eis que um dia em que passava distraída por uma de suas temáticas preferidas foi abordada por um leitor curioso, aventureiro  faminto de leitura. Deu atenção a ele, sucumbiu aos seus encantos de crítico literário profundamente interessado quase mesmo apaixonado pela sua escrita. Ele  a seguiu desde então discípulo das idéias que assimilava rapidamente apropriando-se dela em co-autoria. A aproximação da escrita se expandiu pra outras aproximações que a arrebatavam da até então prazenteira solidão inquietadora e fértil de inspirações. Até que um dia viu-se encurralada na pauta entre as margens da folha em branco sabotada em  sua liberdade criativa...arrumou as malas e se mudou. Com esse breve script concluiu o desenho e pôs-se então a colorir. Em cada pincelada um novo traço surgia contornando o dela, a escritora debruçada sobre o teclado. Ao final o que se via era uma sobreposição de figuras que se abraçavam formando apenas uma... Sentadas entrelaçados os membros inferiores ou em pé apoiando as cabeças sobre os ombros uma da outra, elas saltavam de um extremo a outro no quadro, escorregando para o teclado surgindo como um texto escrito na tela, no corpo dela, extremos do teto ao chão grafados na pele,  editados. Era um texto, era um quadro, era um invento transcrito na pele, de dentro do peito ao pé do coração, a mais fértil Inspiração. Na janela, o  dia amanhecia na tela dentro dela.

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