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quarta-feira, 7 de setembro de 2011

De passagem

Era um pintor, ou uma pintora? Ao leitor, fica a escolha. Viajava pelo mundo com sua mala de tintas, carvão, cavalete e pincéis. Quando chegava a um lugar se punha elemento da paisagem fotografando com o olhar cada detalhe. Visitava pessoas, conhecia o poder local e dele as intenções nas entrelinhas, mergulhava-se nos templos da fé religiosa, política e cultural, desenhava na tela mental: animais, rios, rochas, minas subterrâneas... captava os modos viventes. E então de um ponto do olhar e do sentir privilegiados, iniciava o trabalho que só terminava quando via nas telas toda a sua leitura do lugar. Via e lia para além do visível e lível pelo ser humano. Numa dessas cidades ao norte do mar Báltico, num país do leste europeu, que nesta história não tinham esses nomes... ao chegar, ouviu dos pássaros que sobrevoavam suas idéias, que a gana pelo poder e dominação territorial ameaçavam a cidade e seus arredores com a destruição da guerra da qual se ocupam os gananciosos. De uma briga entre poderosos protegidos em seus palácios, anunciava-se a destruição secando cada orvalho de esperança, cada vaso florido nas janelas, cada riso... Imediatamente como quem socorre uma vítima do risco fatal, iniciou seu trabalho pintando casas, jardins, lagos, igrejas, prédios, escolas, monumentos, em fim toda a cidade. Ficou faltando apenas o sentimento de quem nela vivia, mas sabia que essa informação seria garantida pelo olhar dos que admiram a pintura e a penetram... leitura esmiuçada de cada mensagem contida. Enquanto trabalhava em sua obra conversava, fazia amigos, colhia nuances... significados para a vida da obra. Ocupou duzentos dias na realização. Quando partiu deixou os quadros com um camponês que os guardou num celeiro desocupado da colheita de milho. Não passou nem um ano e num conflito de interesses a cidade foi invadida e destruída em menos de dois dias. Escombros e entulhos, histórias sem desfecho, vidas subtraídas, coisas da guerra que os homens fazem com as mesmas mãos que pintam, acariciam as crianças, assinam a condenação, regem a orquestra, acenam o adeus, enxugam lágrimas...Miséria e sobrevivência passou a ser o cenário do que sobrou...Dez anos de subjugo do novo rei, ferido no combate, que carregou com sua crueldade, o mal que o manteve no leito até a morte. Sua mulher, rainha sábia e apaixonada pela vida, empregou toda a fortuna acumulada, na idéia da reconstrução da cidade que aprendera amar. Por onde começar? Saía todas as manhãs procurando pessoas antigas do lugar...algumas lhes falavam sobre o pintor que passara por ali tempos atrás. Determinada descobriu o camponês que guardara as pinturas da cidade...eram muitas...Em posse delas, ordenou que cada monumento e lugar fossem reconstruídos tal qual registro do pintor. E os sentimentos? Como recuperá-los? Construiu então um lugar para a arte e sua história, colocou nele todos os quadros do pintor viajante, chamou os moradores sobreviventes que se tornaram a memória dos conversadores sobre as coisas do lugar, abriu escolas para os mais jovens... e a cidade ressurgiu fênix. O pintor foi procurado a pedido da rainha, estava chegando no mesmo dia que eu para ser coroado benfeitor... Fiquei para a festa, visitei o museu, conversei com as pessoas, fiz novas anotações, ajustes na bagagem, continuei a viagem...

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